Os livros resistirão às tecnologias
digitais.
Especialista em história da leitura afirma que a internet
pode se transformarem aliada dos textos por permitir sua divulgação em grande
escala.
CRISTINA ZAHAR novaescola@atleitor.com.br
O francês
Roger Chartier é um dos mais reconhecidos historiadores da atualidade. Professor
e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e professor do
Collège de France, ambos em Paris, também leciona na Universidade da
Pensilvânia, nos Estados Unidos, e viaja o mundo proferindo palestras.
Sua especialidade é a leitura, com ênfase nas práticas culturais
da humanidade. Mas ele não se debruça apenas sobre o passado. Interessa-se
também pelos efeitos da revolução digital. “Estamos vivendo a primeira
transformação da técnica de produção e reprodução de textos e essa mudança na
forma e no suporte influencia o próprio hábito de ler”, diz.
Diferentemente dos que preveem o fim da leitura e dos livros por
causa dos computadores, Chartier acha que a internet pode ser uma poderosa
aliada para manter a cultura escrita. “Além de auxiliar no aprendizado, a
tecnologia faz circular os textos de forma intensa, aberta e universal e,
acredito, vai criar um novo tipo de obra literária ou histórica. Dispomos hoje
de três formas de produção, transcrição e transmissão de texto: a mão, impressa
e eletrônica – e elas coexistem.”
No fim de junho,Chartier esteve no Brasil para lançar seu livro Inscrever
& Apagar, em que discute a preservação da memória e a efemeridade dos
textos escritos. Nesta entrevista, ele conta como a leitura se popularizou no século
19, mas destaca que bem antes disso já existiam textos circulando pelos lugares
mais remotos da Europa na forma de literatura de cordel e de bibliotecas ambulantes.
Confira os principais trechos da conversa.
Como era, no passado,
o contato das crianças e dos jovens com a leitura?
ROGER CHARTIER A
literatura se restringia às peças teatrais. As representações públicas em
Londres, como podemos ver nas últimas cenas do filme Shakespeare Apaixonado,
e nas arenas da Espanha, são exemplos disso. Já nos séculos 19 e 20, as
crianças e os jovens conheciam a literatura por meio de exercícios escolares:
leitura de trechos de obras, recitações, cópias e produções que imitavam o estilo
de autores antigos, como as famosas cartas da escritora Madame de Sévigné (1626-1696)
e as fábulas de La Fontaine (1621-1695).
Quando a leitura se
tornou popular?
CHARTIER No
século 19, surgiu um novo contingente de leitores: crianças, mulheres e
trabalhadores. Para esses novos públicos, os editores lançaram livros escolares,
revistas e jornais. Porém, desde o século 16, existiam livros populares na
Europa: a literatura de cordel na Espanha e em Portugal, os chapbooks (pequenos
livros comercializados por vendedores ambulantes) na Inglaterra e a Biblioteca
Azul (acervo que circulava em regiões remotas) na França. Por outro lado,
certos leitores mais alfabetizados que os demais se apropriaram dos textos
lidos pelas elites. O livro O Queijo e os Vermes, do italiano Carlo Guinzburg,
publicado em 1980, relata as leituras de um moleiro do século 16.
As práticas atuais de
leitura têm relação com as práticas do passado?
CHARTIER É
claro. Na Renascença, por exemplo, a leitura e a escrita eram acessíveis a
poucas pessoas, que utilizavam uma técnica conhecida como loci comunes,
ou lugares-comuns, ou seja, exemplos a serem seguidos e imitados. O leitor
assinalava nos textos trechos para copiar, fazia marcações nas margens dos
livros e anotações num caderno para usar essas citações nas próprias produções.
No século 16, editores publicaram compilações de lugares-comuns para facilitar
a tarefa dos leitores, como fez o filósofo Erasmo de Roterdã (1466-1536).
Em que medida
compreender essas e outras práticas sociais de leitura pode transformar a
relação com os textos escritos?
CHARTIER Os
estudos da história da leitura costumam esquecer dois importantes elementos: o suporte
material dos textos e as variadas formas de ler. Eles são decisivos para a
construção de sentido e interpretação da leitura em qualquer época. Dom
Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes (1547-1616), era lido
em silêncio, como hoje, mas também em voz alta, capítulo por capítulo, para platéias
de ouvintes. Todas as pesquisas nessa área formam um patrimônio comum com o
qual os professores podem construir estratégias pedagógicas, considerando as
práticas de leitura.
Que papel a literatura
ocupa na Educação atual?
CHARTIER A
escola se afastou da literatura, principalmente no Brasil, porque está
preocupada em oferecer ao maior número possível de crianças as habilidades
básicas de leitura e escrita. Mas acredito que os professores devem acolher a
literatura novamente, da alfabetização aos cursos de nível superior, como
mostram várias experiências pedagógicas. Na França, por exemplo, um filme recém-lançado
exibe uma peça do dramaturgo Pierre de Marivaux (1688-1763) encenada por
jovens moradores de bairros pobres.
Muitos dizem que
desenvolver o gosto dos jovens pela leitura é um desafio.
CHARTIER Certamente.Mas
é papel da escola incentivar a relação dos alunos com um patrimônio cultural cujos
textos servem de base para pensar a relação consigo mesmo, com os outros e o
mundo. É preciso tirar proveito das novas possibilidades do mundo eletrônico e
ao mesmo tempo entender a lógica de outro tipo de produção escrita que traz ao
leitor instrumentos para pensar e viver melhor.
O senhor quer dizer que
a internet pode ajudar os jovens a conhecer a riqueza do mundo literário?
CHARTIER Sim.
O essencial da leitura hoje passa pela tela do computador. Mas muita gente diz
que o livro acabou, que ninguém mais lê, que o texto está ameaçado. Eu não
concordo. O que há nas telas dos computadores? Texto – e também imagens e
jogos. A questão é que a leitura atualmente se dá de forma, fragmentada, num
mundo em que cada texto é pensado como uma unidade separada de informação. Essa
forma de leitura se reflete na relação com as obras, já que o livro impresso dá
ao leitor a percepção de totalidade, coerência e identidade – o que não ocorre
na tela. É muito difícil manter um contato profundo com um romance de Machado
de Assis no computador.
CURIOSIDADE
O senhor acha que o
e-paper (dispositivo eletrônico flexível como uma folha de papel) é o futuro do
livro?
CHARTIER Os
textos eletrônicos são abertos, maleáveis, gratuitos e esses aspectos são
contrários aos da publicação tradicional de um texto (que pressupõe a criação
de um objeto de negócio). Para ser publicado, um texto deve ser estável. Na
internet, os textos eletrônicos continuaram protegidos, ou seja, não podem ser
alterados, e têm de ser comprados e descarregados no computador do usuário
integralmente. Para mim, a discussão sobre o futuro dos livros passa pela
oposição entre comunicação eletrônica e publicação eletrônica, entre
maleabilidade e gratuidade.
Ao longo da história da
humanidade, acompanhamos a passagem da leitura oral para a silenciosa, a
expansão dos livros e dos jornais e a transmissão eletrônica de textos. Qual
foi a mais radical?
CHARTIER Sem
dúvida, a transmissão eletrônica. E por uma razão bastante simples: nunca houve
uma transformação tão radical na técnica de produção e reprodução de textos e
no suporte deles. O livro já existia antes de Guttenberg criar os tipos móveis,
mas as práticas de leitura começaram lentamente a se modificar com a
possibilidade de imprimir os volumes em larga escala. Hoje temos no mundo digital
um novo suporte, a tela do computador, e uma nova prática de leitura, muito
mais rápida e fragmentada. Ela abre um mundo de possibilidades, mas também
muitos desafios para quem gosta de ler e sobretudo para os professores, que
precisam desenvolver em seus alunos o prazer da leitura.
É muito fácil publicar informações
falsas na internet. Como evitar isso?
CHARTIER A
leitura do texto eletrônico priva o leitor dos critérios de julgamento que
existem no mundo impresso. Uma informação histórica publicada num livro de uma
editora respeitada tem mais chance de estar correta do que uma que saiu numa
revista ou num site. É claro que há erros nos livros e ótimos artigos em
revistas e sites. Mas há um sistema de referências que hierarquiza as
possibilidades de acerto no mundo impresso e que não existe no mundo digital. Isso
permite que haja tantos plágios e informações falsas. Precisamos fornecer instrumentos
críticos para controlar e corrigir informações na internet, evitando que a
máquina seja um veículo de falsificação.
“Um romance se lê de forma
reflexiva. E isso é
muito diferente de pular
de uma informação a outra, como fazemos num site” Essa fragmentação dos
conteúdos na internet não afeta negativamente a formação de novos leitores?
CHARTIER Provavelmente
sim. Na internet, não há nada que obrigue o leitor a ler uma obra inteira e a
compreender em sua totalidade. Mas cabe às escolas, bibliotecas e meios de
comunicação mostrar que há outras formas de leitura que não estão na tela dos
computadores. O professor deve ensinar que um romance é uma obra que se lê
lentamente, de forma reflexiva. E que isso é muito diferente de pular de uma
informação a outra, como fazemos ao ler notícias ou um site. Por tudo isso, não
tenho dúvida de que a cultura impressa continuará existindo.
As novas tecnologias não
comprometem o entendimento e o sentido completo de uma obra literária?
CHARTIER Sim
e não. A pergunta que devemos nos fazer é: o que é um texto? O que é um livro? A
tecnologia reforça a possibilidade de acesso ao texto literário, mas também faz
com que seja difícil apreender sua totalidade, seu sentido completo. É a mesma
superfície (uma tela) que exibe todos os tipos de texto no mundo eletrônico. É
função da escola e dos meios de comunicação manter o conceito do que é uma
criação intelectual e valorizar os dois modos de leitura, o digital e o papel.
É essencial fazer essa ponte nos dias de hoje.
O novo suporte
tecnológico pode auxiliar a leitura, mas não necessariamente o desempenho
escolar.
CHARTIER Pesquisas
realizadas em vários países mostram que o uso do computador na Educação, quando
acompanhado de métodos pedagógicos, melhora, sim, o aprendizado, acelera a
alfabetização e permite o domínio das regras da língua, como a ortografia e a
sintaxe. É preciso desenvolver políticas públicas que tenham por objetivo a
correta utilização da tecnologia na sala de aula.
Fonte: Revista Escola
Pesquisa realizada por Elana Pereira.
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